quarta-feira, 8 de junho de 2011

Arbeit Macht Frei (ou um exercício de contorcionismo aplicado ao inútil)


Por Kaique Pimentel 
 
Dedicado aos que realmente estão à margem de tudo.

Subindo a avenida, dentro do circular lotado, de pé e com a cara amassada de sono, ele ia trabalhar, avaliando a sorte que era (ou não) trabalhar em uma repartiçãozinha pública besta com um contrato temporário...vender um terço do seu dia por um preço razoável durante um ano; o que no fim das contas se encaixava com o fato de que, pra ele, qualquer emprego se tornava um pé no saco sem tamanho.
Mal chegou no fim dessa  analise quando percebeu que, mais uma vez, tinha descido no ponto errado, ao mesmo tempo em que chegava à conclusão que o que tinha era a soma do melhor dos mundos dos seus pais: o salário mais ou menos, amparado  por uma lei oitomilequalquercoisa de não sei quando e que caía todo quinto dia útil  mês na conta do banco lembrava o emprego público tedioso da mãe. Já a rapidez com que o dia de trabalho passa  lembra o trabalho braçal,  brutalizante e semi-autodestrutivo do pai.
Mais um quarteirão e ele vira a esquina do drive-thru do Mccâncer, pensando também que “pelo menos com esse dinheiro deu pra sair de casa”.
(Não que a casa dos pais fosse de todo ruim, mas ele tinha que seguir o caminho obrigatório: sairdecasacontanobancoempreguinhobesta5vezesporsemana2,5filhoscasinhapróprianumbairrolánapoutaquepariufinanciadapelacaixaeconomicafederalcachorrovereumprogramaidiotanaTvnofinaldecadadia e etc.)
Os primeiros passos pra a vidinha besta de classe média baixa que sua família tinha traçado para ele estavam dados...agora era assinar o livro de ponto e tentar explicar porquê  estava atrasado 15 minutos pela enésima vez: pensar realmente é uma praga purulenta e podre!
Livro de ponto, caneta na mão, 8:00 no primeiro quadrado da pagina com seu nome, (uma mentira besta na folha:já são 8:20!) um rabisco à guisa de assinatura e era hora de começar a vender suas 8 horas diárias.
Chegando na sala, ele encontra as figuras de  todo dia: Wilson, um velho com cara de vilão de desenho animado: barba branca, nariz adunco, meio careca, barrigudo, a calça sempre caindo e que só abre a boca pra arremessar um palavrão ou outro impropério aleatório qualquer,  Zé Antônio (que desconfia-se estar 90% do tempo bêbado, visto que fala enrolado como um bêbado, solta frases nonsense como um bêbado, cambaleia e cochila como um bêbado...) Pedro, que está sempre mais calmo que deveria, repetindo alguma coisa engraçada com voz de desenho animado, e, last but not least, a turista da sala, que provavelmente não estaria lá naquele dia, que raramente ia trabalhar (mais precisamente: só umas 3 vezes por mês) que passa o dia todo ao telefone com sei lá quem falando um monte de abobrinha com aquela voz arrastada e empapada de Lexotan 600 mg e uma cara de “Jabba the hut”, fora seus dois colegas de infortúnio...
Uma pilha de envelopes e formulários de correio está esperando na mesa: cola selo, bate carimbo, copia o endereço do destinatário na carta, no formulário de seiláoque do correio, pesa, anota o peso na carta e na porra do formulário. Próxima carta. Ele Fica nessa “brincadeira” por mais ou menos meia hora. Joga um pouco de conversa fora; o jogo do Atlético, fulano jogou mal, fulano é um pouta jogador e blábláblá, vou ter tanto de desconto no fim do mês, não vou ter desconto nenhum… isso por mais alguns minutos, até o não-tão-esperado chamado: 50 caixas de nãoseidequal equipamento ultra caro, que se alguém deixar uma que seja cair, quebrar , machucar, sujar ou sumir, vai ter o salário descontado integralmente pelo resto do contrato e, quem sabe, até pagar pra trabalhar pro resto da vida aqui. Aí é tirar do depósito do térreo, levar pra outro depósito no primeiro andar, anotar um zilhão de numerosinhos idiotas de patrimônio e de série e depois colocar em algum canto até chegar a hora de mandar pr'algum canto qualquer que, definitivamente, não interessa a ele.
O depósito é como todos os depósitos de coisas do mundo devem ser - apesar de não ter a ínfima vontade e nem possibilidade de ver todos os depósitos do mundo, ele tem a certeza absoluta de que todos são iguais: sem uma janela que seja, com um monte de caixas espalhadas em um monte de prateleiras, que variam entre madeira sem pintura e alumínio pintado de bege ou cinza escuro, cheias de caixas e mais caixas e mais caixas de sei lá o que(o conteúdo não importa, a única coisa que importa é que o sumiço ou um dano no conteúdo ferra a vida de bestas feito ele) , dispostas nas paredes com alguma ordem que pra ele é tão misteriosa quanto o sexo dos anjos.
Algumas poucas prateleiras passam  e o levam até as malditas caixas, que vão fazê-lo suar como um porco capado no sol escaldante do deserto do Saara enquanto carrega, coloca no elevador, tira do elevador, carrega, coloca em um carrinho( onde só cabem cinco caixas), levantar o carrinho, empurrar o carrinho cagando de medo das caixas caírem (que valem mais que a sua vida medíocre de contratado temporário), se quebrarem, e  como condição sine qua non, inevitável e certa, fuderem a sua vida estúpida e desconfortável...
Depois desse exercício de medo, força e um pouco de destreza aplicada ao inútil, ele  pára, bebe água, respira como  uma mulher no parto, (o concurso que fez não avisava que ele serviria ocasionalmente de besta de carga e ele não tem força praticamente nenhuma pra isso) e se prepara pra parte burocrática da coisa, que vai lhe consumir o resto da manhã e o resto da tarde...(mas que mesmo assim, detêm uma vantagem minima: discussões sobre qualquer coisa que ele imagine, podendo participar ou só ouvir, quando não estiver participando...)
Pausa para o almoço: o mesmo restaurante de todo dia, claro! o mais barato da vizinhança, com a mesma comida todo dia, sem alteração nenhuma ao longo dos tempos...a não ser o preço, que só sobe.
Uma hora depois, ele está de volta no segundo depósito da repartição (basicamente com a mesma cara do outro, excetuando algumas diferenças minimas: uma janela de vidro no canto esquerdo, uma mesa no meio e uma balança no canto). Hora de abrir caixas, anotar números que não fazem um mínimo de sentido e passar a tarde discutindo o que parece fazer sentido.
Após uma meia duzia de caixasnumerosadesivosdemaisnumeros seguidas de mais caixasnumerosadesivosdemaisnumeros, um dos seus colegas de infortúnio solta a questão do dia:
            - Você veio ao mundo a trabalho ou a passeio?
Uma ótima questão para fazê-lo ferver os miolos (somada com as que já tinham feito ele se atrasar mais cedo), que prontamente foi respondida do canto oposto da mesa do depósito por outra pergunta:
            - Como assim?
            - A passeio ou a trabalho, ora!
“Belo esclarecimento!”, pensa ele ainda calado.
Depois de um discurso sobre o trabalho ser “a dimensão transformadora da vida, (definição quase marxista, diga-se de passagem, o que é hilário, já que o discurso anti-comuna desse cara é a favor dos donos do chicote) que faz as coisas mudarem, que transforma a vida das pessoas, que transforma o mundo, que faz as coisas surgirem”, opiniões em contrario começam a surgir do outro lado da mesa:
            - Perai!.E o que o ócio pode produzir de bom, não se enquadra em transformação não?
Do chão ele acompanha a discussão, como que de uma arquibancada do coliseu, vendo leões e cristãos a se digladiarem:
            - Então você veio a passeio, há!
Caras de “ahn?! Que porra é essa ?” surgem ,e logo em seguida delas mais uma pergunta pra indicar o rumo estranho da discussão:
            - Nos melhores momentos da sua vida,você estava trabalhando ou  fora do trabalho?
            - Fora do trabalho, ora, onde mais?
Um ar triunfante surge do lado arremessador de perguntas da mesa:
            - Não disse? Você veio a passeio!
Mais uma vez, o ar triunfante surge, seguido de uma, até então inédita, explicação:
            - Se o trabalho não é o melhor da sua vida, você veio a passeio...é bem simples, se você só se  sente satisfeito fora do trabalho, você está pela vida a passeio.
             - Então se eu não me sinto satisfeito fora das 8 horas que eu sou obrigado a vender pra conseguir viver eu vim a passeio? Pra mim isso é uma forma muito besta de ver as coisas... o trabalho é só uma dimensão da vida! SÓ UMA, ENTENDEU?
            - Pode ser só uma, mas é dimensão que muda as coisas.
            - Muda as coisas pra quem? Pra quem lucra com o produto do trabalho alheio? Pra quem perde 8 horas todo dia sabendo que o melhor do que produz vai fazer a festa de um outro qualquer? Seja o outro um patrão fiadaputa que investiu algum dinheiro e arranca o de quem trabalha pra ele pagando um mínimo qualquer, seja prum governo, igual o que paga a gente conseguir fazer o que acha e pra manter as coisas do jeito que sempre foram.
            - As coisas não são bem assim não, ô seu comunista...quem investe algum dinheiro, o suor do trabalho dele, merece o lucro como recompensa...
Antes que ele terminasse o raciocínio, uma pedra em forma de palavra é arremessada do campo adversário da mesa:
            - Suor do trabalho ou da renda/herança/exploração alheia?
            - Ah lá...já começou...daqui a pouco solta um “em Cuba” ou um “na união soviética...”.Essa conversa de dividir as coisas por igual só foi um jeito bonito de botar todo mundo na miséria debaixo de um governo totalitário qualquer.
             - E quem te disse que só existe esse jeito de dividir as coisas e que ele depende de um governo totalitário? Aliás, quem te disse que as coisas do jeito que são dão muita margem de escolha, muita opção?
            - Aiai, sempre a mesma história...vou resumir: o capitalismo, com livre iniciativa, é o pior jeito de levar as coisas, depois de todos os outros, que não deram certo em canto nenhum, é isso?

Aquela conversa era, basicamente, a mesma conversa  que sempre se dava entre os dois, nas quais ele nunca se atrevia a intervir muito... mas pelo que tinha batido na sua cabeça durante o dia, quem sabe não abria uma exceção?
           
            - Genial!- arrisca ele - ou eu aceito chicote no lombo vindo do patrão, que vai me arrancar o couro até os 70 anos, ou eu aceito levar chumbo no lombo de um governo que resolve até quantas vezes eu posso cagar no dia? Belo leque de opções, hein?
            Os dois fazem uma cara estranha, ignoram o que ele diz e  deixam que   continue carregando as caixas sozinho. Ele ignora  o resto da discussão, como devia ter feito desde o inicio.
            Depois de duas horas, rodando feito um peru bêbado, ele repara que a discussão voltou ao ponto inicial e diz:
            - Tá bom, vocês dois devem estar certo, agora vamo parar de masturbação mental e me ajudar a carregar a merda dessas caixas.


Moral da história: na pratica, a teoria é outra.



 Nota do autor: arbeit macht frei estava escrito no portão do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia e quer dizer “o trabalho liberta” em alemão. 

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